segunda-feira, 5 de maio de 2014

Voo verde

Voo verde

A conta já está feita. A aviação comercial deverá reduzir em 50% as emissões de dióxido de carbono (CO2) até 2050 em relação ao que foi emitido pelos motores de aviões em 2005. Para isso, um grande esforço de pesquisa e desenvolvimento está sendo feito em vários países por instituições e empresas no sentido de alcançar um querosene não mais produzido de petróleo, mas de origem renovável, que lance menos gases nocivos na atmosfera. O bioquerosene, como está sendo chamado, tem grandes chances de levar o Brasil a novamente se tornar um centro de referência mundial importante para o desenvolvimento e produção de um biocombustível como foi com o álcool e o biodiesel. Essa tendência está destacada no estudo “Plano de voo para biocombustíveis de aviação no Brasil: plano de ação” apresentado no início de junho, em São Paulo, e patrocinado por duas das três maiores fabricantes de aviões do mundo, a Boeing e a Embraer, com financiamento da FAPESP e coordenação do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Também participaram do estudo, desenvolvido ao longo de um ano com a realização de 8 workshops, 33 parceiros, entre empresas nacionais e internacionais, universidades e institutos de pesquisa.
O estudo apresenta várias rotas tecnológicas que podem partir de matérias-primas –como a tradicional cana-de-açúcar até algas, gordura animal, óleos vegetais, material ligno-celulósico, amidos e lixo urbano – e utilizar variadas tecnologias de conversão e refino até a obtenção do bioquerosene. Nessas etapas, indica o estudo, ainda existem muitas lacunas importantes no âmbito tecnológico e de custos a serem preenchidas. São dificuldades técnicas que vão exigir a participação de todos os envolvidos, de fabricantes de aviões a empresas de aviação, desenvolvedores e fornecedores de combustível, além das entidades certificadoras mundiais. Outro fator a ser levado em consideração é o da logística de produção e distribuição do biocombustível para 108 aeroportos nacionais onde pousam as grandes aeronaves, o que representa 1 milhão de voos programados apenas no espaço aéreo brasileiro, além da necessidade de servir aos 62 mil voos internacionais que partem por ano do Brasil, com destino a 58 aeroportos de 35 países. Esses voos para o exterior representam 60% do consumo de querosene para aviação no país.
O bioquerosene para ser qualificado precisa de critérios específicos e rigorosos. É preciso que ele satisfaça as mesmas especificações técnicas do combustível atual para ser considerado drop-in, característica que garante o pronto abastecimento nos motores atuais e naqueles ainda em desenvolvimento, além de poder ser misturado com querosene de aviação convencional. “É consenso que nas próximas décadas não vai haver uma grande mudança tecnológica nos combustíveis para a aviação comercial, como a incorporação de energia solar, células a combustível que funcionam com hidrogênio ou baterias de lítio, por exemplo. Esses equipamentos ocupam muito espaço e são pesados, o que exige maior gasto de combustíveis”, explica o professor Luís Augusto Cortez, vice-reitor de relações internacionais da Unicamp e coordenador do estudo. “Não há como diminuir as emissões apenas com a melhora da eficiência dos motores e por isso estamos incentivando a pesquisa para novos biocombustíveis”, diz Mauro Kern, vice-presidente executivo de engenharia e tecnologia da Embraer. A empresa anunciou em junho a nova linha dos seus jatos, a E2, que começa a voar a partir de 2018 com menos gastos de combustível e diminuição das emissões.
056-060_Bioquerosene_209-2Entre as tecnologias mais avançadas em desenvolvimento no Brasil e que foram citadas durante o anúncio do estudo estão os bioquerosenes da Amyris e o da Solazyme, duas empresas de bioenergia, ambas com origem no estado da Califórnia nos Estados Unidos. As duas fazem parte do grupo de parceiros no estudo coordenado pela FAPESP. A primeira, fundada por pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Berkeley, está no Brasil desde 2007. A empresa já produz desde dezembro de 2012, no município de Brotas, no interior paulista, o farneseno, um produto líquido feito a partir do caldo de cana com o uso de linhagens de leveduras Saccharomyces cerevisiaemodificadas geneticamente. Esses microrganismos transformados atuam no processo de fermentação e levam a produção do farneseno, e não do etanol. A partir desse produto é possível, por processos de refino específicos, fabricar tanto o bioquerosene como produtos para a indústria química ou, ainda, o diesel que foi o primeiro alvo da empresa no Brasil (ver Pesquisa FAPESP n° 153), utilizado experimentalmente em algumas frotas de ônibus nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
056-060_Bioquerosene_209-5Para ser um fornecedor de bioquerosene, as empresas que desenvolvem esse biocombustível precisam receber a aprovação da Sociedade Americana para Testes e Materiais (ASTM, na sigla em inglês). Como parte desse processo, foram realizados voos-teste com no máximo 50% de biocombustível misturado a igual porção de combustível tradicional. Foi o que aconteceu no dia 20 de junho, quando a Amyris, junto com a Total, supriu com bioquerosene um Airbus 321 durante o Paris Air Show. “O combustível usado foi produzido com cana-de-açúcar do Brasil”, diz Velasco. Antes, em junho de 2012, a empresa já havia fornecido bioquerosene para um voo no Rio de Janeiro durante a Conferência Rio+20. Nesse caso, a aeronave foi um jato E195 da Azul Linhas Aéreas, fabricado pela Embraer. Em junho deste ano, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) publicou a especificação brasileira para bioquerosene de aviação, alinhada com os procedimentos internacionais, possibilitando que voos comerciais possam usar o biocombustível no país.
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A Solazyme, no Brasil, firmou uma parceria com a empresa Bunge, produtora de óleos vegetais para o mercado de nutrição e biodiesel, que possui usinas de cana-de-açúcar. Assim, a Solazyme Bunge Produtos Renováveis está construindo uma unidade de produção ao lado de uma usina, no município de Orindiúva, no interior paulista. O óleo primordial é produzido a partir de um processo de fermentação do açúcar existente no caldo de cana por meio das microalgas, cuja espécie a empresa não divulga o nome. “Pelo nosso processo o caldo de cana é transformado em um óleo de alto valor agregado”, diz Walfredo Linhares, diretor da Solazyme no Brasil. Ele informa que a empresa já tem parcerias com a Volkswagen e contrato de fornecimento para a Marinha norte-americana que não quer depender mais exclusivamente dos derivados de petróleo. A produção no Brasil deve começar no final de 2013 e a Solazyme Bunge conta com um investimento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) de R$ 246 milhões. A fabricação do bioquerosene no Brasil ainda depende de acertos com alguma outra empresa especializada em refino ou mesmo com a construção de uma unidade própria. Tanto a Solazyme quanto a Amyris podem adaptar as tecnologias próprias para outros tipos de açúcar como a beterraba na Europa, o amido do milho, nos Estados Unidos, e também o bagaço de cana-de-açúcar.

Usina da Amyris, em Brotas (SP)

Os exemplos de processos em desenvolvimento no país para produção de bioquerosene renovável mostram que o Brasil busca se firmar na linha de frente no mundo dos biocombustíveis. “O país tem vantagens relevantes e uma situação diferente à do etanol e do biodiesel, cuja aceitação por parte das empresas resultou do incentivo dos programas de governo. Agora é diferente. Existe uma demanda global por parte das companhias de aviação para um combustível que emita menos CO2”, diz o professor Luiz Horta Nogueira, da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), em Minas Gerais, participante do estudo. O trajeto, até caminhões de bioquerosene adentrarem os aeroportos para abastecer os aviões, ainda é longo e depende também da comprovação de quanto cada biocombustível deixa de emitir CO2 e outros poluentes, em comparação ao feito de petróleo. “Ainda temos uma dificuldade em estabelecer e analisar o ciclo de vida das emissões do bioquerosene. Não existem dados confiáveis, conforme diagnosticado em nosso estudo”, diz Cortez.

Gestão ambiental